Evento reúne egressos para lançar rede global de educação e justiça

Ex-detentos criam rede internacional por direito a estudo nas prisões

Brasil sedia o primeiro encontro da Rede Global de Acadêmicos da Liberdade (GFS) para conectar ex-detentos universitários


Situação carcerária no Brasil

O Brasil tem atualmente mais de 800 mil pessoas encarceradas, uma das maiores populações carcerárias do mundo, e com alto índice de reincidência. Porém, somente 16% dessas pessoas estão matriculadas em algum curso educacional. Das que estudam e estão privadas de liberdade, cerca de 3 mil fazem algum curso superior ou técnico profissionalizante. O restante está inscrito em cursos de alfabetização, de ensino fundamental e médio.

Entre os egressos do sistema, que ainda cumprem pena (como em liberdade condicional, por exemplo), apenas 0,4% estão matriculados em alguma instituição de ensino.

Cenário global e evento internacional

A realidade brasileira não é muito diferente da de outros países, em maior ou menor grau. Para discutir esse cenário em âmbito global, a organização Incarceration Nations Network (INN), com sede em Nova York (EUA) e na Cidade do Cabo (África do Sul), promove no dia 31 de agosto, em São Paulo, um grande evento internacional para o lançamento da Rede Global de Acadêmicos da Liberdade – ou GFS (Global Freedom Scholars Network).

Educação e não encarceramento

Com o tema “Educação e Não o Encarceramento”, este será o primeiro encontro presencial de pessoas que obtiveram diplomas universitários na prisão, em regime semiaberto, ou iniciaram um curso dentro do regime fechado. Alguns desses cursos foram concluídos quando essas pessoas voltaram para casa ou ainda seguem estudando, agora em liberdade. O evento acontecerá no Museu do Futebol (estádio do Pacaembu), será gratuito e aberto ao público. Começará a partir das 14h e contará com a participação de integrantes da rede de acadêmicos de todos os estados brasileiros e de 12 diferentes países.

Objetivos da rede GFS

Com o lançamento oficial da Rede GFS, o encontro pretende aumentar a conscientização sobre questões cruciais relacionadas à educação na prisão. Também busca discutir os problemas que afetam as políticas preventivas para melhorar a inserção social dos egressos do sistema. O Brasil é um dos países com uma das maiores populações carcerárias do mundo e altos níveis de reincidência. Esse cenário se deve, principalmente, à ineficácia de políticas preventivas ou programas sociais voltados a pessoas anteriormente encarceradas.

Programação do evento

O evento contará com uma programação rica em debates, música brasileira, gastronomia e artes. Representantes do poder público, da sociedade civil, de organizações sociais, e pesquisadores de universidades nacionais e estrangeiras estarão presentes. Delegados e participantes egressos de países como Nigéria, Itália, Reino Unido, EUA, África do Sul, Brasil, Colômbia, Uruguai, México, Argentina, Trinidad e Tobago, e El Salvador também participarão.

Delegados e participantes estrangeiros

Entre os delegados e participantes estrangeiros estão: Devon Simmons, que passou 15 anos e meio na prisão nos EUA e é agora cofundador da Paralegal Pathways Initiative na Faculdade de Direito da Universidade de Columbia, em Nova Iorque. A iniciativa oferece acesso à profissão jurídica a pessoas egressas do sistema prisional. Waldemar Cubillo, da Argentina, estudou sociologia na prisão e hoje é Diretor do Programa de Direitos Humanos da Universidade Nacional de San Martin.

Dan Whyte, do Reino Unido, cumpriu 20 anos de prisão e agora está concluindo seu doutorado em criminologia. Ele atua como líder do capítulo da GFS no Reino Unido. Nicholas Khan, de Trinidad e Tobago, aprendeu a ler enquanto estava encarcerado. Agora, ele é autor de dois livros de poesia e cofundador da primeira iniciativa do país que oferece ensino universitário às pessoas privadas de liberdade, o Prison-to-College Pipeline.

Parceria para o lançamento da rede global

Para a estreia da Rede Global de Acadêmicos da Liberdade, a organização Incarceration Nations Network conta com o apoio do Projeto Nova Rota. Este projeto foi criado em 2019 por ex-alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Pioneira no Brasil, a iniciativa oferece bolsas de estudo, mentoria e apoio multidisciplinar a pessoas egressas do sistema prisional. Atualmente, o projeto mantém 22 alunos matriculados em cursos de graduação em São Paulo e Rio de Janeiro.

Educação como ferramenta de reinserção social

“Acreditamos na educação como ferramenta para otimizar potencialidades individuais e, consequentemente, o processo de integração social”, afirma a coordenadora do Nova Rota e mestranda em criminologia na USP, Katherine de Almeida Martins. “Visamos contribuir a longo prazo para a diminuição dos índices de reincidência criminal e melhoria de políticas públicas de atendimento a essa população. Isso se dá através, sobretudo, do engajamento da sociedade civil e diminuição dos índices de reincidência criminal”, acrescenta a especialista.

Katherine lembra que, dos cerca de 800 mil presos no Brasil, a maioria são jovens e pretos. “Quatro em cada dez pessoas encarceradas têm até 29 anos de idade. Apenas um pouco mais de 10% dessa população tem o Ensino Médio Completo e mais de 46% não chegou a concluir o Ensino Fundamental”, ressalta. Segundo ela, sem uma oportunidade de continuar os estudos durante o encarceramento, o perfil de baixa escolaridade tende a se agravar ao longo do cumprimento da pena em privação de liberdade.

Educação que transforma

“Queremos alcançar espaços e iniciativas que acolham práticas educativas libertárias. Consequentemente, isso permitirá que pessoas encarceradas e egressas exerçam uma atividade profissional que lhes proporcione caminhos para uma vida digna, desempenhando atividades de forma autônoma, criativa e ampla. Superando, assim, desigualdades sociais e realidades a ela impostas desde o nascimento”, defende.

A visão da Incarceration Nations Network

Para a diretora-executiva da Incarceration Nations Network, Dra. Baz Dreisinger, um curso superior para essa população tem o potencial de transformar não só a vida do estudante como toda a comunidade onde ele está inserido. “Na INN, falamos religiosamente sobre ‘Educação, Não Encarceramento’, tanto porque sabemos que o acesso ao ensino superior muda vidas e comunidades, quanto porque a ideia de educação universitária para pessoas encarceradas e egressas do sistema prisional não é uma ideia radical, mas necessária e, portanto, praticada em países de todo o mundo, inclusive no Brasil”, afirma.

Projeto Reintegrar

Professora do renomado John Jay College of Criminal Justice da City University of New York, a Dra. Baz Dreisinger é autora do premiado livro Incarceration Nations: A Journey to Justice in Prisons Around the World, considerado uma das melhores obras do ano pelo The Washington Post. O projeto de educação universitária voltado a pessoas encarceradas, ao qual ela se refere, se chama Reintegrar – Programa de Formação Superior para Pessoas Privadas de Liberdade. Ele acontece na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), com o apoio da Secretaria de Administração Penitenciária daquele estado.

Novas turmas previstas

Esta é a primeira vez que uma grade própria com curso específico é criada, já com duas turmas previstas para 2025. Uma delas será formada por 30 mulheres privadas de liberdade dentro da Unidade Penitenciária Feminina de São Luís. A segunda turma acontecerá em um campus da UEMA, voltada a 30 mulheres egressas do sistema prisional, mas que ainda cumprem suas penas (em liberdade condicional, por exemplo).

“Desse modo, garantimos que as alunas que progredirem do regime fechado para o aberto possam continuar o curso na outra turma”, explica a antropóloga e professora da UEMA, Karina Biondi. Segundo ela, o primeiro curso será o de Serviço Social. O objetivo é formar pessoas aptas a trabalhar em projetos em suas comunidades, atuando na prevenção do encarceramento e contribuindo para interromper o ciclo de violência que tem a prisão como seu ponto de propulsão. Karina é autora das obras Proibido Roubar na Quebrada: Território, Lei e Hierarquia no PCC, eleito melhor livro pela Brazil Section da LASA (2019), e Junto e Misturado: uma etnografia do PCC, cuja versão em inglês levou o APLA Book Prize (2017).

Próximos passos da rede GFS

Passado o lançamento da Global Freedom Scholars Network, será realizada em São Paulo, no dia 1º de setembro, uma reunião fechada dos membros da Rede na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP) para a redação do Manifesto GFS. Essa reunião contará com a participação híbrida de presos e egressos e com a participação virtual de membros da rede em seis países. O objetivo é formular a mensagem do grupo a prisões e universidades e planejar outras ações.

A rede também fará eventos anuais em cada país, com uma reunião global por ano. Além disso, desenvolverá programas de atividades voluntárias e de bolsas de estudo, e promoverá sua expansão para mais seis países. Também está prevista uma audiência na ONU sobre “Educação e Não Encarceramento”.

Início de uma nova plataforma

O encontro no Museu do Futebol em São Paulo marca também o início de funcionamento de uma plataforma multimídia online da GFS. Esta plataforma será uma espécie de rede social que permitirá que os alunos de todo o mundo criem páginas de perfil, colaborem e compartilhem novidades. Ela também permitirá que acadêmicos e membros da comunidade empresarial possam atuar como mentores e empregadores dos alunos da rede.

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